Entrevista Dois:Pontos
PAULO GEIGER E O POTENCIAL ANTISSEMITISMO NO BRASIL
Editor de obras de referência fala sobre o aumento do antissemitismo no país e a banalização de símbolos da religião que pode contribuir para esse fator
Por Julia Gerchenzon e Pedro Bueno
26 Junho, 2020

"Eu tinha, há alguns anos, uma empregada doméstica que vinha do Nordeste, que, quando ela soube que nós éramos judeus, ficou muito espantada ao saber não tínhamos chifres e rabo." Foto: Arquivo Pessoal
Há 75 anos, chegava ao fim a Segunda Guerra Mundial e junto com ela um dos acontecimentos mais tristes da história da humanidade: o Holocausto. Fundamentado pela ideologia nazista, o antissemitismo foi responsável pela morte de mais de seis milhões de judeus, entre os anos de 1939 e 1945. Apesar de hoje, haver toda a preservação de uma memória, a religião judaica parece se tornar, novamente, cada vez mais alvo de preconceito. No Brasil, nos últimos cinco anos, a porcentagem do antissemitismo aumentou – saltou de 16% para 25%, segundo o levantamento feito no final do ano passado pela Anti-Defamation League (organização judaica americana que luta contra discriminação). Chama atenção também, a curiosa menção a símbolos que remetem a época de Adolf Hitler e a cultura judaica, que se tornou comum no Brasil. São exemplos desse estranho resgate o vídeo gravado pelo presidente, Jair Bolsonaro, enquanto toma um copo de leite – um símbolo da supremacia branca -; o tweet do, na época, ministro da Educação, Abraham Weintraub, em que tira o sentido da Noite dos Cristais – episódio que é considerado um marco na perseguição aos judeus na Segunda Guerra -; a propaganda feita pelo, também então, secretário da cultura, Roberto Alvim, em que cita o ministro da propaganda do nazismo, Joseph Goebbels; e as bandeiras de Israel espalhadas por manifestações políticas Brasil afora.
O designer e editor de obras de referência há mais de 40 anos, Paulo Geiger, judeu e estudante da história e cultura judaica, lembra que as ferramentas ideológicas de Hitler aconteceram em uma Alemanha consolidada do século XX e que apesar da crise histórica, econômica e social, se baseava em uma sociedade contemporânea e já difundida. Geiger, que também é tradutor do hebraico há mais de 60 anos e escreve para a revista judaica Devarim, chama a atenção para história, e lembra que o judeu sempre foi alvo de perseguições, durante todo o processo de formação dele, e que, hoje, toda a situação vivida pelo Brasil pode contribuir para a religião judaica se tornar novamente o alvo. Um dos motivos que ele enxerga pra isso está ligado a formação do Estado de Israel e a desinformação das grandes massas da população brasileira.
Também de acordo com a pesquisa da Anti-Defamation League, no Brasil, 22% dos entrevistados nunca ouviram falar no Holocausto e 55% das pessoas dizem que nunca encontraram um judeu. Como essa falta de conhecimento unida com a banalização de símbolos pode contribuir para o aumento do antissemitismo no Brasil?
A desorientação semântica que estamos enfrentando é tão grande, que já não se sabe o que os discursos querem dizer. É um fenômeno em que as pessoas querem usar, a seu favor, conceitos que deveriam ser unânimes e de entendimento comum. O ponto de referência é perdido e isso é muito preocupante. Com relação aos termos ligados ao nazismo e a cultura judaica, eu me pergunto se isso é uma coincidência a uma invasão de termos que quer gerar uma confusão de ideias ou é uma intenção de começar a criar um quadro de associações que compactuam com a rejeição? Eu não sei a resposta, mas a recorrência dos fatos me deixa dúvidas se isso não é intencional. Vale lembrar que a repetição de ideias e de símbolos foram muito bem feitas pelo nazismo e pelo comunismo. As teorias totalitárias polarizantes usam essas alusões para criar um quadro e a desinformação pode contribuir pra isso. Eu tinha, há alguns anos, uma empregada doméstica que vinha do Nordeste, que, quando ela soube que nós éramos judeus, ficou muito espantada ao saber não tínhamos chifres e rabo. Isso ainda no século XX, mas que pode estar sendo visto no século atual. Ou seja, essas tradições que nem se colocam em questão, porque elas são tão permanentes na lembrança histórica, que não há questionamento. Aquilo faz parte do acervo folclórico. Então, aquelas histórias mitológicas de que os judeus mataram Cristo, que os judeus envenenaram poços para causar a Peste Negra, que os judeus matam crianças cristãs, e outras, muitas pessoas acreditam, não porque tenha visto um judeu, mas porque ouviram falar sobre esses folclores. Isso acontece com os judeus e com qualquer tipo de minorias “diferentes”. A desinformação pode aumentar, exponencialmente as consequências do preconceito. Hoje em dia, dificilmente alguém vai liderar uma campanha antissemita alegando esses lemas e estigmas dos judeus, mas isso pode ser o que vai alimentar a massa imaginária. Ou seja, qualquer preconceito que não acredita na história do preconceituoso, pode, por símbolos antigos, que vem da ignorância e da desinformação, ser levada às massas para gerar as consequências de qualquer preconceito. Essas simbologias antigas, para os intelectuais estão descartadas, mas elas não são rejeitadas na cabeça de muita gente que está desinformada, ou pouco informada, e isso me preocupa muito.
Associar os judeus com a formação do Estado de Israel é algo comum para a população e, hoje, há muita gente que é contra a formação de Israel. Como o antissionismo pode alimentar o antissemitismo?
Martin Luther King disse uma frase alguns anos antes de ser assassinado: ‘O antissionismo é antissemitismo.’ Ser antissionista tem uma raiz funda em ser antissemita, porque não é possível negar aos judeus um direito que se concedeu a todos os povos no mundo, que é o direito à autodeterminação. É isso que o sionismo moderno prega e executou. Isso não quer dizer que, desavisadamente, muitas pessoas que não são antissemitas deixem se influenciar pela retórica, mas aí é preciso realmente explicar. Os judeus ganharam o direito, pela Declarações do Direito do Homem, igual aos outros povos, e negar esse direito é ser antissemita. Em 1975, a ONU aprovou em uma votação que dizia que o sionismo era uma forma de racismo. Isso é incompreensível, e essa votação foi até anulada alguns anos depois. O judaísmo é baseado numa base tríplice. Primeiro é o pertencimento. Segundo, ter um futuro comum. E por último, um lugar para o destino comum. O povo judeu, historicamente, se libertou da escravidão, no Egito, e quiseram ter essa identidade de pertencer a um povo e ter um destino comum, que era a terra que prometeram os antepassados. Ele atravessa 40 anos no deserto para chegar à terra prometida e se instalar lá. Isso é sionismo, uma coisa que nasce junto com o povo judeu e não uma crença desenvolvida no fim do século XIX. O problema está no conflito que acontece no Oriente Médio, onde já haviam se instalado lá, há 1300 anos, gente de outros povos - árabes que migraram no século VII. Isso leva a extensão para o antissemitismo, hoje. O movimento sionista nunca pregou que era preciso extirpar os árabes. Pelo contrário. Ele cria uma pátria judaica em que todos os habitantes são bem-vindos e a própria declaração de independência de Israel diz isso. Então, há um conflito de que o Estado do povo judeu, que é o Estado de Israel, supostamente é opressor e dominador de outro povo. De uma acusação que não tem nada a ver com os judeus no mundo, em um caso específico, em um conflito específico, complexo, se encontra uma explicação antissemita que acaba se estendendo para um preconceito. Então, hoje, o antissionismo está sendo um deflagrador do antissemitismo, embora o judeu aqui no Brasil não tenha nada a ver com o que está acontecendo em Israel, ainda mais quando se trazem bandeiras do Estado judaico para manifestações de um determinado pensamento político. A tendência é que o oposto a esse pensamento político, associe indevidamente a bandeira de Israel a uma ideia judaica. Há essa questão geopolítica que associam judeus do Brasil e de outras partes do mundo que contribuem para esse tipo de ideologia.
BOLSONARO E O COPO DE LEITE
E como explicar essas bandeiras de Israel em manifestações políticas no Brasil?
A Confederação Israelita do Brasil (Conib) e o governo de Israel publicaram notas dizendo-se preocupados com o uso indevido da bandeira de Israel em manifestações que dizem respeito a política brasileira. É legal deixar claro que a comunidade judaica no Brasil é plural, e que não há uma caracterização política atual para o judeu brasileiro. Cada judeu no país tem sua concepção individual da política local, como cidadão, e isso tem que ser respeitado. Não existe nenhuma bandeira judaica, com característica judaica, seja de Israel ou outra, que possa insinuar qualquer tipo de manifestação setorial de qualquer tendência política brasileira. O Estado de Israel disse que ele não quer estar representado em nenhum tipo de expressão política local. Eles não têm envolvimento. Não se pode dizer que a bandeira de Israel está representando o governo israelense, por mais que o governo de Netanyahu tenha boas relações com o governo brasileiro. O atual governo israelense é passageiro, assim como o governo de Bolsonaro. Uma bandeira nacional não pode simbolizar a proximidade entre dois governos que são passageiros. Então, o próprio Estado de Israel diz que não quer ver sua bandeira associada a nada local, envolvidas por questões locais. Isso cai de novo na questão do uso errado da simbologia que pode alimentar preconceitos. Hoje, no Brasil, eu vejo em movimentos de esquerda, um antissionismo que eu não consigo compreender. Mesmo dentro desse contexto nacional atual, Israel é muito mais progressista do que os países que o cercam. Eu, por exemplo, como judeu sionista, não compactuo com o atual governo israelense, mas isso não quer dizer, ser justificável ser anti-israelense, em geral, por ser contra o governo do país atual. São coisas completamente diferentes. Não dá pra entender essa posição da esquerda contra Israel, a não ser pelo simples fato de que Israel tem uma história de ligação com os Estados Unidos. Esse estigma de ter sido um aliado permanente dos americanos pode influenciar essa visão. O curioso é que não consigo enxergar um antissemitismo nesse caso poítico brasileiro, embora pontualmente possa existir também.
Os judeus, em geral, se destacam pelo alto índice socioeconômico. Aqui no Brasil, alguns adeptos da religião não se sentem, de fato, uma minoria, por não serem privados de privilégios. Como explicar esse fator?
É compreensível se sentir assim. Sou judeu e nunca me senti uma minoria, porque convivi com todas as condições com quem partilha da minha cor, idade, sexo e condição econômica. Eu compartilho as possibilidades com aberturas, que não são limitadas pra mim, e o meu judaísmo não me faz sentir minoria, porque ele não interfere na minha situação econômica e cultural. Porém, isso acaba até o momento em que, por fato do judeu ser uma minoria sim, numérica e de identidade histórica, apontarem pra ele como um elemento diferenciado. O problema está nas circunstâncias que propiciam essa visão - a frustração social, econômica, as angústias com relação ao futuro, o medo e a insegurança. Quando o ser humano se sente inseguro, ele procura um objeto para achar uma causa para combate-la. Os alemães foram buscar isso nos judeus. Eles foram frustrados de se desenvolver e viveram uma crise econômica histórica, com uma inflação astronômica. Aquele orgulho nacional alemão, na circunstância de angústia, teve que transferir aquilo e procurou alguém para isso. Quase eles provaram que estavam certos, com o seu sucesso provisório durante muitos anos. Então, em qualquer momento e em qualquer lugar, esse sentimento pode aflorar. A posição de minoria como judeu é sempre um potencial de preconceito. Pode não acontecer nunca, pode acontecer amanhã ou pode acontecer daqui a uma hora.
Como o antissemitismo, mesmo com um acontecimento “recente”, que é o Holocausto, ainda pode crescer no Brasil e no mundo?
Eu diria que o antissemitismo é uma antipaixão. É a paixão do negativo. Jean-Paul Sartre, em ‘A questão judaica’, exemplifica a questão em um tomate. O problema de quem não gosta de tomate, não está no tomate e sim em quem não gosta dele. Dando outro exemplo, tem um filme chamado ‘Esse obscuro objeto de desejo’, em que o protagonista é loucamente apaixonado por uma mulher, que é interpretada por duas atrizes. O personagem do filme não percebe isso. São mulheres com aspectos totalmente diferentes e ele não percebe. Isso quer dizer que o sentimento da paixão é o importante, enquanto o objeto é secundário. O antissemitismo dentro dessa ótica, tem o preconceito como principal sentimento, e o judeu se torna secundário. O objeto não é a causa do preconceito, ele é a busca do preconceito por parte de quem propaga, porque ele precisa disso. É uma necessidade do preconceituoso em transferir as frustrações que ele tem consigo mesmo. Seja judeu, negro ou homossexual, o agente acha vários objetos. É muito interessante essa análise, porque ela cabe em todo antissemitismo através da história e as várias roupagens que ele vestiu. Ele tem tantas motivações diferentes, quando a verdadeira seria a necessidade do preconceito. O antissemitismo já tem dois mil anos na história, mas se trata exatamente do mesmo fenômeno, que ao mesmo tempo tem causas sociais, psicológicas e econômicas divergentes. O antissemitismo não é um fenômeno explicito o tempo todo, ele pode ser um catalisador para despertar o monstro que estava adormecido. Sempre digo que esse monstro está sempre disponível no caso dos judeus, porque os judeus são historicamente um diferente, porque eles resistiram a todas as tentativas de aculturação, afirmando sua identidade e não abrindo mão dela nunca. Isso, às vezes, é confundido com arrogância, com prepotência e um sentimento de superioridade. Ao se fecharem em guetos, se isolar para se defender, eles suscitam o ódio ao diferente. O antissemitismo está em toda parte potencialmente esperando a necessidade do preconceituoso de externar seus problemas para um objeto. Ele vai surgir por uma questão de oportunidade, às vezes, por ideologia, como é o caso do nazismo, e, às vezes, por reação às circunstâncias sociais, econômicas e demais. O mundo de hoje favorece o cenário do aumento dos preconceitos e, mais especificamente, do antissemitismo, por eu achar que os judeus ainda são os primeiros da fila em matéria de ser diferente.