Julia Gerchenzon
19 Maio, 2020
Hoje não deu
O tema que tínhamos decidido para escrever nesta semana era sobre ética no jornalismo e se realmente vale tudo pela matéria. Eu comecei a pesquisar sobre o assunto, li fragmentos de monografias e já tinha começado a escrever o texto, que falava sobre o meu livro favorito, Abusado, de Caco Barcellos (editora Record). Para quem não sabe, o livro revela os bastidores e a rotina da terceira geração do Comando Vermelho, a maior facção criminosa do Rio de Janeiro. As 553 páginas do livro giram em torno do traficante Juliano VP (com o codinome Marcinho VP). O líder do CV revelou segredos do tráfico e durante a produção do livro, que durou quatro anos, foi ameaçado de morte por ''falar demais''. O Marcinho VP foi morto dois meses depois do lançamento de 'Abusado', na cadeia, por colegas de cela. As declarações que ele deu para Caco, podem ter sido um dos motivos do assassinato do traficante.
Em uma aula da faculdade, eu disse que esse era o meu livro favorito, e o professor fez duras críticas ao Caco Barcellos. Segundo ele, o jornalista já sabia que algumas das informações que estavam no livro poderiam causar retaliações, e até mesmo, a morte do traficante. Além disso, outros jornalistas criticaram o fato do autor não usar codinomes para alguns moradores da favela, que poderiam ser prejudicados com as declarações dadas para o autor. O meu plano, era falar sobre esse dilema do jornalismo, publicar um material, mesmo que excelente e revelador, sem medir as consequências. Mas hoje, não deu.
Hoje não deu.
Hoje, 1149 pessoas morreram por complicações causadas pelo novo coronavírus no Brasil. Eu não aguento mais ver gente que divide a sala de aula comigo, e que vai carregar um diploma de jornalista igual ao meu, debochando das 17.971 mortes por coronavírus no nosso país. Eu não aguento mais ver o playboy da zona sul correndo na praia, sem máscara, passando ao lado do trabalhador, que está esperando no ponto de ônibus. Eu não aguento mais ver filhinho de papai andando por aí, para fumar maconha nos condomínios da Barra da Tijuca. Eu não aguento mais ver gente que vive na bolha social Zona Sul do Rio de Janeiro debochando das 17.971 mortes no Brasil. Eu não aguento mais ver story no Instagram de gente privilegiada debochando das 17.971 mortes no Brasil.
Hoje não deu.

Foto: Bruno Itan / Olhar Complexo
Os sonhos, o futuro e a vida do João Pedro, de 14 anos, foram interrompidos - e não foi culpa do coronavírus.
Ontem, a PM do RJ, durante uma operação no Complexo do Salgueiro, sim, uma operação policial durante a pandemia, atirou no adolescente, que estava dentro de casa, respeitando a quarentena, seguindo as orientações do Governo genocida que o matou. Os policiais colocaram o jovem no helicóptero e sumiram com o menino por mais de 12h. O corpo foi encontrado pela família na manhã de hoje no IML. Na última sexta-feira (15), a Polícia Civil e o BOPE realizaram uma operação policial no Complexo do Alemão em que 10 moradores morreram, casas foram invadidas e carros foram destruídos pela polícia. Não é de hoje que parte da população carioca tem os direitos humanos violados pelo próprio Estado. Até quando a vida do jovem negro vai ser estatística?
Hoje não deu.
Eu sei que está sendo difícil para todo mundo, mas para muita gente os planos acadêmicos e profissionais estão em modo ''suspenso''’, uma boa terapia é capaz de aliviar essa angústia. Para uma outra grande parcela da sociedade, os problemas são outros: fome, falta de saneamento básico, dividir a casa com o seu abusador, e viver com o medo de ser morto pelo próprio Estado, aquele, que tem o papel proteger. Eu não sei porque especialmente hoje não deu, talvez tenha sido a combinação de imagens debochadas que eu vi no meu Instagram, as 1149 vidas perdidas, só hoje, por causa da covid-19, ou a morte de mais um jovem negro periférico, que vai entrar para estatística. Ou se foi tudo isso junto.
CONTINUA
Pedro Bueno
19 Maio, 2020
"Não era o combinado"
Há alguns anos o Brasil vive uma instabilidade política, mas em um cenário de pandemia e crise institucional, a relação entre governo e imprensa nunca esteve tão abalada nesse processo de redemocratização. Com esse relacionamento entre mídia e políticos em pé de guerra, a sociedade se dividiu em dois lados para falar sobre o trabalho dos veículos de comunicação. Para alguns a Globo Lixo nunca mais deveria ser assistida, como para outros o papel do jornalismo é absolutamente correto e intocável. Com 21 anos e uma pequena experiência no mercado da área, não discuto o papel social da profissão, mas vejo algo sobre discussão na ética no jornalismo.
Duas entrevistas se destacaram recentemente pelo termo que virou moda para os entrevistados nesse período: “Não foi o combinado”. Casos como a entrevista da ministra da Cultura, Regina Duarte, e do ministro da Educação, Abraham Weintraub, ambas feitas pela CNN, levantaram essa fala dos entrevistados. Primeiro ponto: entrevista não se combina com entrevistado (ponto final). Mas Weintraub questionou o aspecto da pauta – o assunto – que vai ser tratado na entrevista. É claro, que em certos casos, como foi até a pergunta feita por Monalisa Perrone, é extremamente válido e preciso o jornalista fugir do tema para conseguir uma declaração a mais que vai ter extrema importância.

Joe McGinniss, jornalista e escritor de "Fatal Vision", livro que lhe rendeu um processo da fonte, o acusado de assassinato, Jeffrey MacDonald (Foto: Cortesia de Nancy Doherty)
Ao falar que foi convidado para falar sobre o Enem e ser perguntado sobre a pasta da Saúde, o ministro se sentiu “traído” e soltou a célebre frase. Seria correto convencer fontes a dar entrevistas para tratar assunto X, e de cara, falar sobre o assunto Y? Pareceu-me o caso de que se a fonte tivesse sido informada que na entrevista marcada o assunto fosse Y, ela não falaria com a emissora. Com esse exemplo está presente, em escalas maiores, no livro “O jornalista e o assassino”, de Janet Malcolm, que discute justamente a ética da profissão. A obra aborda o caso McGinniss-MacDonald e o livro Fatal Vision. O jornalista McGuinnis oferece a chance de escrever um livro do ponto de vista de um condenado por assassinato (McDonald). Convencido do resultado de uma obra de defesa o condenado fala tudo. Fatal Vision, portando, foi uma forte condenação do jornalista a fonte que lhe concedeu as informações.
É importante ressaltar que não procurei fazer nenhuma espécie de advogado do ministro, e reitero que não acho que tenha sido o caso. Porém, o episódio abriu o caminho para o questionamento, assim como a pandemia alerta para o resgate de um sensacionalismo que já não se via tanto nos noticiários. Quantos parentes de vítimas já foram às telas no Jornal Nacional? Uma das formas de cobertura, como a tragédia, parece não ter sido totalmente repensada pela imprensa. Nada como em “O Abutre”, filme estrelado por Jake Gyllenhaal, mas as fortes cenas que não acrescentam muito às informações além de dor e sofrimento ligam um alerta na mídia para esse tipos de situação.


