Julia Gerchenzon
23 Março, 2020
Não deveria, mas é possível separar atitudes polêmicas de artistas?
Ninguém vai deixar de ouvir Alegria Alegria ou Leãozinho porque Caetano Veloso namorou uma menina de 13 anos quando ele tinha 40. Tão pouco, vão deixar de escutar Los Hermanos porque Marcelo Camelo começou a namorar Mallu Magalhães, sua atual esposa, quando ele tinha 30 anos e ela 15. E pedofilia é algo que os fãs desses dois artistas reprimem veemente.
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Também não vão deixar de ler Iracema, clássico da literatura brasileira, de José Alencar, porque ele defendia o regime escravocrata e foi contrário à abolição da escravidão. É impossível apagar da memória os contos do Sítio do Pica-pau Amarelo, obra de Monteiro Lobato, autor considerado racista por muitos.
Separar autor e obra tomou maiores proporções com as redes sociais, principalmente com o SnapChat, com o Twitter e com o Instagram. Hoje em dia, não é possível separar o artista da pessoa e acredito que isso tenha um impacto significativo para essa discussão.

Obra "Criador e criatura", Michelangelo. (Foto: Pinterest)
O público não quer saber apenas se aquele/a cantor ou cantora canta bem e compõe musicas boas, também querem saber o posicionamento político e ideológico daquele/a artista. Anitta, por exemplo, é cobrada várias vezes pela falta de posicionamento em assuntos polêmicos que estão em alta.
Em uma entrevista ao Correio Braziliense, o sociólogo e doutor em ciência da comunicação Luis García Tojar diz que ''essa tal proximidade virtual pode fazer pensar que se tenha acesso a essas figuras, por isso pessoas se dão ao direito de fazer julgamentos como se tivessem intimidade, até pela vontade de identificação com alguém cuja obra admiramos. “Quando isso não ocorre, há o questionamento ou, eventualmente, o repúdio”.
Separar a arte do artista é possível, principalmente daqueles que já morreram ou se aposentaram. Charles Chaplin, um dos maiores cineastas do mundo era pedófilo e foi acusado de diversos abusos sexuais, e não se fala muito sobre isso. Já Woody Allen, o diretor cult de cinema, que ainda está vivo, também foi acusado por abusos sexuais e não conseguiu financiamento para o seu novo projeto.
Em 2017, O Movimento contra o abuso sexual, #metoo, mobilizou pessoas (principalmente artistas mulheres) a quebrarem o silêncio contra abusadores, inclusive dentro da indústria hollywoodiana. Em consequência desse movimento histórico e importantíssimo, atores e diretores, até então, consagrados, perderam contratos, e diversos projetos foram cancelados. A série House Of Cards é um exemplo disso.
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Acredito que para separar, ou não, criador de criatura, o tempo (atualidade dos fatos) é o principal fator. Por exemplo, se Caetano Veloso aparecesse nas ruas do Leblon, hoje em dia, com uma menina de 15 anos, acredito que ele seria cancelado.
CONTINUA
Pedro Bueno
23 Março, 2020
As diferenças entre admirar e lembrar
Na quarta-feira (4), via a estreia do Flamengo na Libertadores, na casa de um amigo meu. No intervalo da partida, o narrador Luís Roberto anunciava uma série de reportagens feita pelo Esporte Espetacular, em homenagem a Ronaldinho Gaúcho. O trailer de “R40”, título que dá nome às matérias, já tinha sido mostrada aos telespectadores, na parada de 15 minutos. Até gritei como Galvão Bueno, no sofá. “Olha o que ele fez! Olha o que ele fez!”. Poucos minutos depois da homenagem a Gaúcho, já com bola rolando no segundo tempo, o narrador solta com um tom surpreso para o público.
- Olha gente, Ronaldinho Gaúcho acaba de ser preso no Paraguai. De acordo com a informação, ele e seu irmão, Assis, tentaram entrar no país com passaportes falsos.
Título 1
Pouco tempo depois, e em meio à pandemia do novo coronavírus, Ronaldinho segue preso no Paraguai. O ex-jogador participou de torneio de futebol na cadeia e iria ganhar até um churrasco de presente dos presos, no fim de semana do aniversário. E a série “R40” foi ao ar. As homenagens e a exaltação de um homem que estava preso por cometer um crime seguiam normalmente. Mas como apagar o que Ronaldinho e tantos outros já fizeram?
É importante ressaltar aqui a gravidade do crime. Acho um amplo debate do que pode ser leve ou pesado para ser esquecido pela sociedade. Falo isso por causa dos nomes que trarei adiante. Não entrarei no mérito do teor criminal dos autores. Afinal a mente do indivíduo é seletiva e pessoal. Uma pessoa pode pensar que ser preso com passaporte falso no Paraguai é motivo de cancelamento (usando a expressão da moda). Ao mesmo tempo, esse mesmo indivíduo, pensa que filmes de um diretor acusado de estupro, mas ganhadores do Oscar devem ser exibidos todo fim de semana. Ou vice-versa. O impacto pessoal de autor X ou obra Y na vida de cada um varia a forma de se pensar o tema.

Ronaldinho cobrindo as algemas com um casaco, enquanto está sendo levado preso pela polícia paraguaia. (Foto: Norberto DUARTE / AFP)
Em cenas gerais, vamos ao significado de duas palavras que muitas vezes vêm acompanhadas. Admirar, no dicionário, quer dizer ter (-se) em alta conta, considerar (alguém, algo ou a si mesmo) com respeito, veneração. Já lembrar significa trazer à memória; recordar. Ambas as palavras nos remetem a memória, mas com diferenças que geram um grande impacto. O cineasta polonês Román Polanski é detentor de uma estatueta de melhor diretor do Oscar. Ele foi premiado em 2003, apesar de ter sido condenado por estuprar uma garota de 13 anos, em 1977. Coroar um estuprador com a maior premiação do cinema é admira-lo, erradamente. “O Pianista”, obra que fez Polanski ganhar a estatueta, poderia ter sido sim considerado um filme para tal feito. Lembrar, hoje da película é algo que futuros diretores e admiradores do cinema devem fazer. Polanski fica com seu nome ali, sendo apenas uma lembrança no meio da admiração de um filme.
Nenhum autor pode ser tão grande ao fato de superar suas obras ou feitos. Afinal, o homem se faz delas. É um efeito reverso, no qual o homem cria, mas a criação se torna maior que o próprio. As pessoas vão a museus para ver obras, não artistas. Quando o turista vai ao Prado ele quer ver Guernica, não Picasso, pintor que com 45 anos teve um caso com Marie-Thérèse Walter, uma jovem de 17 anos. Os torcedores queriam ver os gols e não o jogador Edmundo, condenado por um acidente de carro que matou três pessoas, na Itália, em 1995. As obras vivem, são eternas, mas os autores passam, morrem. Uma lembrança passageira evita que “Alegria Alegria”, uma música de Caetano Veloso, feita na época do AI-5, suma dos livros de história. O cantor foi outro acusado de se relacionar sexualmente com uma menina de 13 anos quando tinha 40. Obras que mereçam devem sempre ser admiradas, já seus autores têm a opção de, quando necessários, serem apenas lembrados.